Em O Pobre de Direita, Jessé Souza explica por que eleitores pobres migraram para a direita, manipulados por discursos religiosos e conservadores que reforçam desigualdades. A metáfora "a barata vota no chinelo e comemora tomando inseticida" representa essa autossabotagem. Souza defende que a esquerda deve se reconectar com os trabalhadores para reverter esse cenário.
Em seu mais recente livro, O Pobre de Direita: A Vingança dos Bastardos (Civilização Brasileira), o sociólogo Jessé Souza explora as razões pelas quais eleitores das classes populares, que antes apoiaram em peso candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT), passaram a votar em massa na direita. Com uma análise sociológica profunda, Souza mostra como a direita e a religião manipularam a raiva dos empobrecidos, canalizando ressentimentos que os afastaram da esquerda e os aproximaram de uma pauta conservadora.
Para compreender essa mudança, Jessé Souza divide a classe empobrecida em dois grandes grupos: o pobre branco, predominantemente das regiões de São Paulo e do Sul do Brasil, e o negro evangélico. Em comum, ambos os grupos manifestam um forte repúdio pela esquerda e por políticas inclusivas, como o Bolsa Família e ações afirmativas, que antes foram vistas como formas de ascensão social. A diferença, no entanto, está na forma como cada grupo é impactado e manipulado pelas desigualdades regionais e raciais do país.
A direita conseguiu canalizar a raiva e o ressentimento dessas classes empobrecidas para construir uma base de apoio popular utilizando dois pilares: o moralismo religioso e o nacionalismo. Essas forças atuam de maneira distinta, mas complementam-se ao oferecer uma “válvula de escape” emocional para o sofrimento cotidiano, direcionando-o contra minorias e partidos progressistas.
A manipulação religiosa, especialmente junto ao eleitorado negro evangélico, revelou-se eficaz em estruturar uma visão de mundo que coloca a moralidade como centro de vida. As igrejas evangélicas, ao prometerem uma vida melhor e redenção espiritual, fortalecem a ideia de que o esforço pessoal, não políticas sociais, é o caminho para a prosperidade. Assim, discursos de ódio são legitimados como uma "defesa dos valores", e a rejeição a pautas de inclusão passa a ser vista como uma resistência necessária contra o que consideram uma “degradação” moral promovida pela esquerda. Esse grupo, que antes votou em Lula e Dilma, passa a enxergar na direita uma representante de seus valores tradicionais e, mais importante, de sua identidade religiosa.
Para o grupo de eleitores pobres brancos do Sul e de São Paulo, Jessé Souza argumenta que o ressentimento está mais profundamente ligado a uma identidade cultural e regional. Esses eleitores, que antes viam no PT uma saída para suas dificuldades econômicas, passaram a perceber a esquerda como uma força que negligencia seus interesses, em prol de pautas identitárias que parecem alheias à sua realidade. Segundo Souza, a direita soube transformar esse desconforto em um discurso de ódio contra a esquerda, alimentando uma visão de que as políticas progressistas "beneficiam apenas os outros".
Na obra, Jessé Souza discute o afastamento progressivo entre a esquerda e as classes populares. Ele argumenta que, ao dar protagonismo a pautas identitárias, a esquerda afastou-se da maioria empobrecida, que se sentiu excluída das políticas inclusivas ou ameaçada por elas. A ausência de uma base de apoio sólida para a classe trabalhadora resultou em uma percepção de que o discurso progressista seria mais voltado para minorias específicas e, portanto, desconectado dos desafios cotidianos dos trabalhadores pobres. Souza sugere que, ao contrário, o PT deveria buscar inspiração em estratégias adotadas por Getúlio Vargas, que soube alinhar-se aos trabalhadores de maneira ampla e integrada, sem alienar setores da sociedade.
Além disso, a direita se mostrou capaz de instrumentalizar a religião e a moralidade de forma mais direta, transformando esses valores em uma ferramenta de manipulação para os ressentidos e empobrecidos. A classe popular passou a ver na direita a “defesa” de uma sociedade de valores rígidos e tradicionais, enquanto a esquerda passou a ser associada a um projeto de destruição dessa moralidade.
A metáfora que Souza usa – “a barata vota no chinelo e comemora tomando inseticida” – simboliza a autodestruição paradoxal do voto popular na extrema direita. Ao apoiar políticas e figuras que reforçam estruturas de desigualdade, esses eleitores celebram um discurso moralista que, em última análise, agrava suas condições de vida. A direita consegue, ao enfatizar valores religiosos e conservadores, criar a ilusão de que seus eleitores estão na “luta correta”, enquanto as condições estruturais que perpetuam a pobreza e a desigualdade permanecem intocadas.
Para Souza, a “comemoração” com inseticida reflete uma satisfação enganosa com a própria ruína, alimentada pela propaganda da extrema direita e pela manipulação religiosa. Ao ignorar políticas de bem-estar e direitos sociais em prol de uma “moralidade tradicional”, esses eleitores empobrecidos acabam presos em um ciclo onde a “comemoração” leva apenas a uma intensificação de suas dificuldades.
Jessé Souza oferece uma crítica contundente às falhas estratégicas da esquerda brasileira. Sua análise revela a necessidade urgente de uma mudança de foco, que retome o diálogo com as classes populares e vá além das pautas identitárias, sem abandoná-las, mas reintegrando-as em um projeto nacional de desenvolvimento inclusivo. Ele sugere que a esquerda precisa compreender o papel essencial do moralismo religioso e das questões identitárias no processo de manipulação desses eleitores, oferecendo, como alternativa, uma visão que una os setores empobrecidos com propostas concretas de melhora social e econômica.
Assim, O Pobre de Direita torna-se uma obra essencial para entender o fenômeno de autossabotagem política e econômica que se manifesta quando os mais pobres, em busca de dignidade e pertencimento, acabam por apoiar aqueles que os empurram ainda mais para baixo. Jessé Souza alerta para o fato de que, enquanto a esquerda não resgatar sua conexão com as necessidades fundamentais das classes populares, a “barata” continuará a votar no “chinelo” e, tragicamente, a celebrar sua própria destruição.
Marcio Ferreira
Jornalista, Doutorando em Sociologia Política, Mestre em Sociologia e sócio na Brotar Comunicação.