As eleições municipais de 2024 revelaram um desempenho fraco da esquerda no Brasil, perdendo espaço para partidos de centro como o PSD e MDB. Embora tenha recuperado presença simbólica nas ruas, a esquerda enfrenta desafios de reconexão com as periferias, que agora se identificam mais com discursos de empreendedorismo e religião, especialmente o movimento evangélico. A necessidade de moderação e aproximação do centro aparece como estratégia de sobrevivência para os partidos de esquerda, que devem reformular suas mensagens para dialogar com o eleitorado e adaptar suas bandeiras históricas às demandas atuais.
As eleições municipais de 2024 trouxeram resultados e reflexões inesperadas para a esquerda no Brasil. Com desempenho inferior ao esperado, partidos como PT, PSB, PDT, PCdoB, PSOL e Rede conquistaram menos prefeituras do que grandes siglas de centro, como o PSD de Gilberto Kassab e o MDB. Em comparação, a esquerda perdeu força política e espaço em diversas capitais e cidades estratégicas. No entanto, há um motivo para comemoração. Depois de quase uma década enfrentando estigmatizações, a esquerda conseguiu voltar às ruas de forma visível, com suas bandeiras, estrelas e camisas vermelhas, sem o receio de represálias e ofensas, comuns após o auge do antipetismo de 2016.
Esse retorno simbólico ao cenário público reflete a necessidade de reavaliar o papel da esquerda e seu diálogo com o eleitorado. Desde a ascensão de Jair Bolsonaro, a direita e a extrema-direita cresceram em protagonismo, fragmentando-se em grupos que representam desde um núcleo mais radical, que concentra entre 13% e 15% de apoio popular, até uma direita tradicional e centro-direita com pautas conservadoras e de apoio ao liberalismo econômico. Esse movimento deixou claro que o crescimento da direita responde melhor aos anseios populares, especialmente nas periferias, onde a esquerda perdeu parte de sua base nos últimos anos.
Nos próximos anos, a esquerda brasileira pode passar por um movimento de moderação, se aproximando de uma centro-esquerda com princípios de social-democracia. Essa moderação surge da necessidade de sobrevivência frente à cláusula de barreira, que obriga os partidos a alcançarem um percentual mínimo de votos para manterem acesso ao fundo partidário e ao tempo de televisão. Caso contrário, precisarão formar federações, como é cogitado entre PDT e PSDB por sugestão de Ciro Gomes. Esse cenário demonstra que a esquerda é plural, composta por diversas frentes de luta e que se adapta para atender às demandas de uma sociedade em transformação.
Moderar o discurso, contudo, não significa abandonar causas históricas. Trata-se de adaptar a mensagem para refletir as preocupações da população, alinhando-se com temas como os direitos da população LGBTQIAPN+, igualdade de gênero e combate ao racismo. Essa abordagem, se bem trabalhada, pode permitir que a esquerda se aproxime mais do pensamento popular, preservando suas bandeiras e, ao mesmo tempo, dialogando com uma sociedade diversa. Assim, a verdadeira conquista para a esquerda nas eleições de 2024 não se limita ao campo eleitoral, mas reside na capacidade de retornar às ruas com confiança e legitimidade, mostrando-se mais sintonizada com a realidade atual.
A fala de Ricardo Nunes, prefeito eleito de São Paulo, de que "a periferia venceu" expõe um ponto crucial: a esquerda precisa reconhecer e reparar sua desconexão com esses territórios. A periferia que antes se organizava em torno de políticas públicas inclusivas, nos últimos anos passou a encontrar maior representação em valores e lideranças que transitam pelo empreendedorismo popular e pela religião, especialmente o movimento evangélico. Esses dois aspectos – a religiosidade e o espírito empreendedor – têm dado força a uma visão de mundo distante das pautas que a esquerda, especialmente a identitária, vem defendendo.
A ascensão do movimento evangélico representa um desafio complexo. Ao mesmo tempo em que agrega uma grande parte da população periférica, ele carrega valores que muitas vezes entram em choque com as pautas progressistas da esquerda. Questões como os direitos LGBTQIAPN+, igualdade de gênero e debates sobre identidade encontram resistência nesse público, criando um abismo entre a esquerda e o que se tornou uma parcela significativa do eleitorado brasileiro. Entender essa dinâmica significa reconhecer que a política para a esquerda deve ser menos sobre discussões internas e mais sobre interpretar as aspirações e perspectivas desses grupos.
O discurso de empreendedorismo, por sua vez, representa outro ponto de inflexão. Antes, a esquerda interpretava o empreendedorismo popular como uma consequência negativa do capitalismo, que forçava trabalhadores a se submeterem a condições precarizadas. Contudo, o sucesso de figuras como Ricardo Nunes, que capturam a simbologia do "empreendedorismo que venceu", mostra que o eleitorado da periferia passou a ver esse tipo de trabalho como símbolo de autonomia, não mais como subemprego ou precarização. Guilherme Boulos, em sua recente "Carta a São Paulo", assume essa necessidade de reconexão ao reconhecer que figuras como o motoboy e o vendedor de quentinha são protagonistas da economia popular, merecendo atenção e diálogo.
O caminho de uma esquerda moderada e próxima do centro pode ser a resposta para reconquistar o eleitorado perdido. A sobrevivência partidária já impõe essa revisão estratégica: a cláusula de barreira força os partidos a se organizarem em federações, rompendo com a visão de uma esquerda monolítica e promovendo a convivência de ideias diversas. A moderação, portanto, surge como um caminho para que os partidos se adaptem à nova realidade do eleitorado.
Essa moderação não implica abandonar as lutas. Pelo contrário, significa transformar as causas históricas em mensagens que dialoguem com os desafios concretos do dia a dia, mantendo vivo o compromisso com temas como combate ao racismo, igualdade de gênero e apoio a minorias. A esquerda precisa ser menos ideológica e mais pragmática em seu discurso, ajustando a forma de expressar suas bandeiras para ampliar o alcance e a adesão popular. O objetivo é construir uma narrativa que dialogue com a diversidade da sociedade, preservando princípios fundamentais e adaptando as estratégias.
A sobrevivência da esquerda não virá apenas da resistência às adversidades, mas da capacidade de reinventar-se e adaptar-se a novos tempos. Após as eleições de 2024, o maior desafio será encontrar uma forma de traduzir os ideais progressistas para as necessidades concretas de uma população que exige voz e presença. Diante disso, a verdadeira conquista para a esquerda foi mostrar que pode retornar às ruas de cabeça erguida, reafirmando sua identidade política. Mas, para além do simbolismo, a esquerda precisará demonstrar que é possível transformar essa presença em uma plataforma de diálogo e ação efetiva.
Esse processo exigirá uma liderança comprometida com o entendimento dos anseios da sociedade e disposta a trilhar caminhos novos, sem perder a essência. A esquerda poderá, assim, consolidar sua relevância ao construir uma plataforma plural e inclusiva, que responda tanto às demandas das periferias quanto aos desafios da sociedade contemporânea.
Marcio Ferreira
Jornalista, Doutorando em Sociologia Política, Mestre em Sociologia e sócio na Brotar Comunicação.