Bolsonarismo, evangélicos e o Censo de 2022

Bolsonarismo, evangélicos e o Censo de 2022

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Marcio Ferreira

O bolsonarismo mudou os evangélicos ou apenas revelou o que o Censo Demográfico de 2022 não mostra?


O Censo Demográfico de 2022, divulgado em junho de 2025, trouxe um dado já esperado: o crescimento do número de brasileiros que se declaram evangélicos, saltando de 21,6% para 26,9% da população entre 2010 e 2022. À primeira vista, parece a confirmação estatística de um fenômeno em curso há décadas. Mas, como alertam estudiosos como a socióloga Christina Vital, os números do IBGE não contam a história inteira — e talvez nem a parte mais importante dela.

O crescimento numérico revela pouco sobre as mudanças internas no campo evangélico. Hoje, o que se entende por “evangélico” abrange denominações históricas, pentecostais, neopentecostais, desigrejados, jovens das chamadas igrejas de parede preta, coaches da fé e influenciadores digitais que transformam a Bíblia em manual de autoajuda. Não há uma só fé evangélica no Brasil, mas uma miríade de experiências, práticas e disputas por poder.

Se o Censo mostra um crescimento aritmético, o bolsonarismo provocou uma reconfiguração política e simbólica nesse universo. E não é exagero dizer: o bolsonarismo mudou o campo evangélico brasileiro ou, ao menos, o revelou em sua dimensão mais política, mais pública, mais disputada.

Antes da ascensão de Jair Bolsonaro, em 2018, ainda havia contenções institucionais sobre manifestações políticas em templos religiosos. Igrejas eram multadas, materiais de campanha apreendidos. Ainda assim, desde os anos 2000 já se desenhava uma aproximação entre igrejas e o Poder Legislativo. Em 2014, o pastor Everaldo foi o primeiro “puro-sangue” a disputar a Presidência da República, sem sucesso, mas abrindo caminho.

Com Bolsonaro, a gramática religiosa tornou-se gramática política. O púlpito presencial cedeu espaço às redes sociais e aos algoritmos do WhatsApp. Pastores passaram a declarar abertamente apoio a candidatos e a construir a ideia de que determinadas pautas seriam “pactos com o maligno”. Deus e o diabo passaram a ter CEP e título eleitoral.

Mesmo não sendo evangélico, Bolsonaro personificou valores de uma base religiosa conservadora, deu a essa base um inimigo comum — a esquerda, os progressistas, artistas, LGBTs, o feminismo — e, em troca, entregou ministérios, cargos e a indicação de um “terrivelmente evangélico” ao STF.

Christina Vital aponta com precisão: o avanço evangélico é especialmente visível nas periferias urbanas, onde o Estado se ausenta e a religião preenche. O templo substitui o posto de saúde, o culto substitui a roda de terapia, o pastor oferece aconselhamento e ajuda material onde o poder público não chega. O pentecostalismo, principalmente, se apresenta como combate espiritual à violência, à dependência, ao desamparo. Não é apenas fé, é também sobrevivência.

Nesse contexto, o crescimento evangélico é menos um fenômeno teológico e mais uma resposta social. E é por isso que os dados do IBGE, embora importantes, não bastam. A religião nas periferias se entranha em redes, corpos, territórios e políticas. Em algumas localidades, como a Baixada Fluminense, os evangélicos não são apenas maioria: são referência moral, política e até de autoridade informal.

Mas há também fissuras nesse mapa. Uma delas é o surgimento dos desigrejados — pessoas que se identificam como evangélicas, mas não frequentam cultos, não se submetem à hierarquia pastoral e nem contribuem com o dízimo. São evangélicos “autônomos”, muitas vezes conectados ao discurso de influenciadores que falam de Jesus com linguagem de coach, vendem Bíblias personalizadas e oferecem cursos para “destravar seu propósito”.

Outro fenômeno é o das igrejas de parede preta: espaços alternativos, mais jovens, com estética sombria e linguagem pop, que atraem adolescentes com promessas de cura espiritual e sucesso pessoal. É um novo evangelicalismo, pós-moderno, digital, que talvez fuja até das métricas do Censo e dos olhos da imprensa.

E o que esperar de 2026? Com o possível impedimento de Jair Bolsonaro, a eleição não contará com o catalisador bolsonarista no campo evangélico. Isso abre espaço para novas disputas: entre denominações, entre pastores, entre candidatos “puro-sangue” e candidatos apenas “identificáveis” com a fé, mas não religiosos.

O apoio evangélico pode se fragmentar. E, segundo Christina Vital, novas lideranças jovens, digitais, carismáticas e alinhadas à extrema direita estão sendo gestadas, talvez ainda fora dos holofotes, mas já atentas às estratégias de influência. Nomes como Sóstenes Cavalcante já apontam o envelhecimento de lideranças tradicionais como um desafio, mas também como uma oportunidade para renovação política e simbólica.

A conclusão é de que não temos mais nem o mesmo campo, nem os mesmos evangélicos. O bolsonarismo não apenas mudou os evangélicos, ele escancarou disputas que já estavam em curso, acelerou processos de politização da fé, quebrou barreiras entre púlpito e palanque e desestabilizou hegemonias internas. A religião evangélica no Brasil é hoje mais diversa, mais complexa, mais midiática e, talvez, mais imprevisível.

O Censo conta quantos são. Mas não diz quem são.

Marcio Ferreira

Marcio Ferreira

Jornalista, Doutorando em Sociologia Política, Mestre em Sociologia e sócio na Brotar Comunicação.

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